Você está decepcionado com nossa classe pastoral, perdida em todo tipo de depravação e hipocrisia? Escandalizado pelas disputas de poder estatal e midiático? Decepcionado com nossas referências da ortodoxia promovendo linchamentos públicos de desafetos teológicos? Eu ando deprimido apenas por ler um noticiário ou abrir as mídias sociais. Mas, se eu estou triste, não devo me surpreender. Nada há de novo, porque esse é um padrão do sacerdócio desde os tempos bíblicos.

A corrupção começou cedo: Arão, escolhido o primeiro sacerdote de Israel, fabricou um bezerro de ouro para atender as necessidades supersticiosas do povo e ainda teve a cara de pau de explicar a Moisés que o ídolo surgiu por milagre (Êx 32.1-4,21-24). Agradar as massas era mais importante do que fazer a coisa certa. Foi o início tenebroso de uma história ainda mais nefasta: anos mais tarde, no período dos juízes, o sacerdócio estava completamente corrompido pelos filhos de Eli, desviando as ofertas para lucro próprio e ainda traçando as moças devotas que vinham cultuar (1Sm 2.12-25). Na época, o jovem Samuel profetizou contra a família do seu tutor, a qual acabou exterminada pelos filisteus. Problema resolvido? Não. Os filhos do próprio profeta Samuel também caíram na corrupção e aparentemente contaram com a vista grossa do pai (1Sm 8.1-3).

Andrea di Lione, Adoração ao bezerro de ouro (1629)

Davi trouxe o sacerdócio para Jerusalém, a cidade recém conquistada e o novo centro de poder estatal. A nova estrutura religiosa projetada por ele e concluída por Salomão significou, a longo prazo, o casamento entre templo e palácio. Diante dessa união, a categoria sacerdotal passou a sofrer cada vez mais interferências dos monarcas judeus, alterando o culto mosaico a seu bel prazer, inclusive colocando ídolos no templo (2Re 21:7). Foi gritante o silêncio complacente do sacerdócio, nunca havendo voz contra as atitudes dos reis. O único caso de protesto terminou na morte do sacerdote acusador (2Cr 24.17-22). Talvez tal risco explique os séculos omissos do sacerdócio. Mas atenção: o descumprimento da lei não significava apenas um problema litúrgico; as idolatrias no templo eram o resumo e símbolo de toda sorte de injustiça política e social praticada em Judá. Pouco antes da invasão babilônica, a categoria atingira graus insuportáveis de comercialização da fé, apoiada nas mentiras de falsos profetas (Jr 5.30-31).

O sacerdócio voltou à Judeia para continuar desobedecendo os mandamentos, tratando as coisas divinas com futilidade (Ml 1.6-9). Esse mesmo sacerdócio restaurado na Terra Prometida iria ganhar cada vez mais centralidade na vida popular no período entre o Antigo e o Novo Testamento. Os sacerdotes eram os governantes da Judeia, pois receberam a autoridade civil do Império Persa e depois dos reinos helenistas. Com o surgimento da economia monetária, o próprio templo – que sempre foi um depósito de riquezas, como eram todos os templos da Antiguidade – tornou-se um verdadeiro banco. Assim, o sacerdócio de Jerusalém controlava a religião, a política e a economia de todo o seu povo. Nesse tempo, os mais ricos da casta sacerdotal compravam desavergonhadamente o cargo de sumo sacerdote dos imperadores de Antioquia, transformando a instituição em verdadeiro balcão de negócios.

Chegamos ao Novo Testamento. O sacerdócio havia se regenerado? Não. Eram chamados de saduceus e a expectativa de Jesus sobre eles não era nada boa. Orientou os discípulos a tomarem cuidado com seus ensinos (Mt 16.6) e depois causou furor aos donos do templo de Jerusalém quando expulsou os mercadores do sagrado, o que afetava diretamente o lucro dos sacerdotes (Mc 11.15-18).

Queremos então acreditar que, com a pregação do Evangelho, o problema da corrupção dos pastores do rebanho teria sido resolvido. Infelizmente não. No tempo do apóstolo Paulo havia diversos pastores pregando a Cristo por pura inveja e ambição (Fl 1.17) e outros entendo ser possível lucrar com a piedade (1Tm 6.5). Eram falsos pastores, simplesmente homens perversos infiltrados no rebanho para cuidar de si mesmos, como atestou Judas (Jd 1.4,11-12).

Por que tantos sacerdotes foram corrompidos e pastores seguiram esse tipo de legado? Penso que a resposta está na proximidade com o poder, tão inebriante e corruptor. É difícil manter a humildade sob holofotes e aplausos, especialmente quando próximo das altas esferas do poder político. Mas não se engane: isso não acontece apenas nas grandes mídias ou na ligação estranha com governos locais ou nacionais. Liderar uma igreja também significa ter uma base de poder pessoal sobre os membros, que é legítima, mas passível de levar à tirania. Também temos pastores exercendo verdadeira opressão sobre a vida de seus membros em pequenas igrejinhas de interior. E essa relação de domínio pode aumentar conforme o ministério atinge “sucesso” em termos numéricos e financeiros. O pecado de Satanás está à espreita mesmo diante do trono de Deus.

Então temos apenas histórias trágicas no sacerdócio bíblico? Não, e aí  está o centro dessa reflexão. Se houve na Bíblia uma grande massa de sacerdócio corrompido, também foi registrada gente fiel, não sujeita aos desmandos do poder humano. Se no tempo de Eli o sacerdócio era uma vergonha para as tribos de Israel, havia um jovem Samuel para demonstrar a existência de homens dignos naquele ofício (1Sm 3.19-21). Quando Davi foi perseguido por Saul recebeu ajuda do sacerdote Aquimelec (1Sm 21:2-10), o qual sofreu a retaliação do rei na forma de um verdadeiro massacre tanto dele como de seu clã (1Sm 22:17-19). Durante o tempo de idolatria e injustiça correndo solta em Judá houve a voz solitária de Jeremias, oriundo de uma família sacerdotal exilada em Anatote desde a época de Salomão (Jr 1:1), bradando contra a corrupção da monarquia, do sacerdócio e do falso profetismo. Durante o exílio houve a voz importante do sacerdote Ezequiel, trazendo consolo na promessa de um futuro pastor digno para um povo aviltado por lideranças inescrupulosas (Ez 34). No retorno do exílio foi Esdras o sacerdote a promover um retorno às Escrituras (Ne 8:1-2). No período interbíblico o velho sacerdote Matatias e seu filho Judas Macabeu se levantaram contra as barbaridades promovidas pelo Império Selêucida sob a chancela de Jerusalém. No Novo Testamento havia a figura de Zacarias, um idoso sacerdote comemorando a chegada da redenção de Israel (Lc 1:67-79). Depois, os próprios apóstolos e diversas lideranças como Priscila e Áquila (Rm 16.3-5) foram pastores exemplares do rebanho de Deus, e acabaram perseguidos por isso.

O que é comum a toda essa gente digna do sacerdócio e do pastorado bíblico? A piedade pouco interessada nas estruturas de poder e muito preocupada com a vida concreta das pessoas de seu relacionamento. Ela sofria a situação real do povo que liderava ou tentava influenciar. Deixo, portanto, duas constatações que podem nos ajudar a viver a fé nesses dias conturbados de desengano com nossas lideranças: 1) a corrupção do sacerdócio é comum e faz parte da realidade do povo de Deus, pois isso aconteceu ao longo de toda a história e eles serão julgado por seus atos; 2) sempre houve sacerdotes e pastores tementes a Deus, fazendo um trabalho muitas vezes anônimo como verdadeiros auxiliadores de Cristo.

Por isso quero terminar com um aspecto positivo: se o pastor da sua igreja tem a possibilidade de exercer esse tipo de poder – e todos têm –, mas não é corrompido; se ele não procura impor os próprios ideais ao seu rebanho; se ele trabalha para o bem-estar da sua família e comunidade; então você está diante de um verdadeiro homem de Deus, mesmo que ele não tenha sucesso midiático ou sua pregação não seja tão empolgante quanto você gostaria.

Então deixe um pouco de lado os pregadores e teólogos famosos da Internet (que são no máximo bons complementos para a sua fé), abrace a sua igreja ou comunidade local e apoie o trabalho desse anônimo pastor, pois é ali, olho no olho, ombro a ombro, que acontece de verdade o Reino de Deus.

Crônica de André Daniel Reinke