Uma das coisas que mais me admiram na Bíblia é sua mordaz sinceridade. Não há subterfúgios: os que denominamos “heróis” são apresentados com sua ousadia em crer, mas sem omitir a podridão de seus pecados. Não há espaço na Palavra para a idealização de um super-humano. E esta é a principal razão pela qual creio na Bíblia: não porque ela descreve o sucesso daqueles que nos inspiram, mas principalmente porque não hesita em mostrar seus fracassos.
A Bíblia é de uma sinceridade constrangedora. Veja o que Jesus mesmo diz: “a cada dia basta seu próprio mal” (Mt 6.34). Muitas vezes, as coisas darão errado – mesmo que você seja um bom servo. Virão momentos de fracasso. Qual a boa notícia nisso? É que na experiência humana com Deus não há espaço para os orgulhosos fanfarrões; já os fracassados, estes são a matéria-prima preferida de nosso Senhor.
Há um personagem que aparece no livro de Atos, surpreendentemente mencionado em um retumbante fracasso: trata-se de João Marcos. Sobrinho de Barnabé, ele abandonara o tio e Paulo na primeira viagem missionária, logo no início da jornada (At 13.13). Quando os dois apóstolos partiram para a segunda missão, ele sofreu severa rejeição de Paulo, chegando ao ponto deste não seguir viagem com Barnabé, tamanha a desavença (At 15.37-39). O que teria se passado na cabeça do rapaz?
A partir daqui vamos imaginar, vamos buscar na ficção as possibilidades do que possa ter acontecido, porque não temos registro histórico ou bíblico detalhado dos fatos. O que sabemos, por informação dos pais da igreja (Inácio e Irineu) é que João Marcos foi discípulo e secretário do apóstolo Pedro. Fico pensando: o que o jovem discípulo conversava com um homem que era uma lenda viva, reconhecido pela igreja primitiva como “a Rocha” [Kefas]? Vamos criar um cenário: certa noite, Pedro menciona que encontrarão Paulo na semana seguinte. O guri estremece por dentro, e o apóstolo – macaco velho que era –, percebe: “O que aconteceu entre vocês?”. João Marcos então conta a história: “Abandonei Paulo e meu tio quando a coisa começou a esquentar e, na hora de mostrar do que eu era feito, fugi”.
Sim, Pedro sabia o que o rapaz sentia. Podemos imaginar ele dizendo a João Marcos: “Deixe-me contar algo sobre abandonar alguém”. E então o maior dos apóstolos começa a narrar o que aconteceu naquela noite de quinta-feira, quando estava escondido no pátio da casa onde Cristo era inquirido (talvez a uns 20 metros de distância): negou conhecer o Senhor três vezes – na cara dele. Foi só na terceira vez, quando um galo cantou no lusco-fusco da manhã, que Jesus o mirou com aqueles olhos tão tristes e solitários, e ele caiu em si (Lc 22.61). Há maior derrota do que essa?
É aqui que aprendemos o que Cristo faz com aqueles que fracassam com ele. Alguns dias depois da ressurreição, Jesus foi ao encontro de Pedro no mar da Galileia (Jo 21). Lá, à beira do mar, no amanhecer e ao lado de uma fogueira (veja como ele recria o cenário da negação!), consolou a alma de Pedro permitindo que ele afirmasse por três vezes, diante de todos os companheiros, que o amava. Mas ainda viria mais, pois Pedro não sabia o tamanho da graça e da chance que Deus ainda lhe daria: segundo Clemente de Roma, Pedro foi martirizado em Roma, crucificado por Nero. Imagino glória que representou para o apóstolo tal fato – que o Senhor lhe tenha dado novamente a chance de mostrar que realmente morreria por Ele.
Voltemos a João Marcos. O que ele aprendeu com o maior dos fracassados? Muito. Primeiramente, a partir das memórias do apóstolo, ele escreveu o primeiro evangelho de que temos notícia, o segundo que está no nosso cânon – o Evangelho de Marcos. Aquele jovem fracassado simplesmente tornou-se escritor da própria Palavra de Deus. E nas novas chances que Deus foi lhe abrindo, encontrou ainda reconhecimento daquele que certamente temia mais que qualquer outro: o severo apóstolo Paulo. Este, também às portas do martírio, escrevera ao discípulo Timóteo o seguinte: “traz também contigo Marcos, porque ele me é útil para o ministério” (2Tm 4.11).
Com a experiência destes dois homens de Deus – o apóstolo Pedro e seu amigo-discípulo de tantos anos, João Marcos – entendemos como Deus não deixa de completar Sua obra por causa dos nossos fracassos; pelo contrário, Ele os usa para o Seu Reino. Então, quero deixar o seguinte para você: quando você fracassar – e não estou dizendo se, mas quando –, lembre-se de três coisas: 1) a tua derrota não impedirá o Reino de Deus; 2) o reconhecimento da nossa fraqueza é a base indispensável para qualquer transformação divina em nós; 3) e nosso Deus é o Deus resgatador dos fracassados e das múltiplas segundas chances.
Vá e viva a alegria de andar com esse misericordioso e amoroso Deus.