O clássico hino protestante “It is well with my soul”, composto no século XIX e traduzido no Brasil (com certa infelicidade) como “Sou feliz com Jesus”, tem uma incrível história por trás de sua origem, com muitas reviravoltas. Provavelmente você conhece somente a primeira parte dela.

Horatio e Anna Spafford viviam em Chicago desde 1856, onde ele mantinha um bem sucedido ofício de advogado e investidor imobiliário. Perderam tudo no grande incêndio de 1871, e passaram os dois anos seguintes trabalhando muito para tentar se recuperar. Exaustos, decidiram viajar de férias para a Europa. A esposa e as quatro filhas embarcaram antes de Horatio, que ainda finalizaria um negócio. O navio sofreu um acidente e afundou, levando consigo 230 passageiros, incluindo as quatro filhas do casal. Anna sobreviveu, e telegrafou para o marido: “Salva sozinha”. Desta tragédia, Horatio compôs o hino que se tornou um clássico no meio protestante: “It is well with my soul”. Parte da letra pode ser traduzida mais ou menos assim:
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Quando a paz, como um rio, se coloca em meu caminho
Quando as tristezas, como o mar agitado, rolarem
Qualquer seja a minha sorte, você me ensinou a dizer
Está tudo bem, está tudo bem com minha alma
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Mas, Senhor, é por ti, pelo teu retorno esperamos
O céu, não o túmulo, é nosso objetivo
Oh, trombeta do anjo, a voz do Senhor!
Abençoada esperança, abençoado descanso da minha alma
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Está tudo bem, está tudo bem, com minha alma
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E Senhor, apressa o dia em que minha fé será vista
As nuvens se abrirão como um pergaminho
A trombeta soará, e o Senhor descerá
Assim mesmo, tudo está bem com minha alma
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Está tudo bem, está tudo bem, com minha alma

A resposta à tragédia é a fé na forma de fidelidade. Mesmo que algo terrível aconteça, está tudo bem com a minha alma por causa da esperança em Deus. Esta é a beleza do clássico hino, e esta é a parte da história que você conhece. O que provavelmente você não sabe é o restante.

Horatio e Anna tiveram mais três filhos. Mas, em 1880, o único menino faleceu de escarlatina (febre), o que gerou uma crise teológica no casal em relação a alguns pontos do calvinismo de sua igreja (a Primeira Igreja Presbiteriana de Chicago). Os líderes os acusaram de negar a predestinação e a condenação eterna, sendo o casal excluído da comunidade após um longo e público debate. Uma vez expulsos, receberam apoio de outros amigos crentes, como o evangelista Dwight Moody e o escritor dispensacionalista William Blackstone, que se colocaram ao lado deles. Aqui verificamos o caso típico em que a ortodoxia vence a misericórdia, e a reta doutrina se torna um elemento de opressão, ignorando a empatia com o sofredor. Ou seja, age como amigo de Jó.

Mas essa história fantástica continua. Juntamente com outros amigos íntimos, que haviam passado por tragédias semelhantes e se chamavam “Overcomers” [vencedores, superadores das dificuldades], a família Spafford se mudou para Jerusalém em 1881, onde se estabeleceu na cidade velha e organizou uma comuna cristã – partilhando os bens, mas fazendo do celibato a regra da casa. Era o efeito da influência da doutrina escatológica do dispensacionalismo, na época em formação nos EUA e divulgada por Blackstone (com apoio de Moody). Todos os dias, os Overcomers iam para o Monte das Oliveiras, onde faziam um piquenique com chá e bolo, para serem os primeiros a ver Cristo no seu retorno glorioso. Ainda receberiam outros protestantes suecos, aumentando o grupo para 150 pessoas. Horatio faleceu em 1888, ficando a liderança com Anna até seu falecimento em 1923, quando a comunidade entrou em declínio. Ela liderou com certa tirania, impedindo filhas e outros de estudarem ou casarem, uma vez que o mundo logo acabaria. Esses princípios duraram até por volta de 1904, quando foram cancelados pela matriarca diante do clamor de todos e da percepção de que o retorno de Cristo poderia demorar mais do que imaginavam.

Também ocorreram coisas muito positivas, como o recebimento de judeus do Iêmem, que tinham sido rejeitados tanto por judeus sefarditas quanto asquenazes, causando boa impressão em árabes e sionistas locais. Foram gentis com todos, judeus ou árabes, e uma colônia importante no atendimento de vítimas durante e depois da Primeira Guerra Mundial, inclusive na organização de um hospital infantil e adoção de crianças órfãs.

A segunda parte não costuma ser muito contada, o que acho lamentável. Ela é importante para não pintarmos uma ideia idílica de fé perfeita, sem contradições ou crises. Nem os personagens bíblicos são apresentados assim, quanto mais as pessoas de nossa relação próxima. O que acho mais impressionante no caso da família Spafford é que, por mais que tenham assumido esta doutrina tão controversa, e que tenham levado suas proposições às últimas consequências, fica um fato inquestionável: eles não perderam sua fé. Mesmo que sua interpretação escatológica fosse desastrosa, não abandonaram a certeza de que o Deus bondoso está no controle. No final das contas, é isso que importa.

E a alma vai bem.

Você também pode assistir a um oratório que conta esta história pelo Coral do Tabernáculo Mórmon: