Aprendi o Hino Nacional quando era criança, lá nos anos 1980. Decorar o hino foi uma das tarefas escolares. Como eu era de família batista, e educado naquele protestantismo iconoclasta típico daqueles tempos, fiquei um pouco perturbado com a expressão “pátria amada, idolatrada, salve, salve”. Foi quando tive minha primeira crise entre o que aprendia na escola e o que recebia como instrução na igreja. Então perguntei para a professora de Escola Bíblica: é idolatria cantar o hino? Como a igreja protestante brasileira era bastante alinhada aos símbolos nacionais, a resposta foi uma espécie de “concessão”. Neste caso, a gente podia cantar, mas mantendo a consciência de que era apenas modo de falar, pois nós adoramos somente a Deus. Bem, me satisfiz com a explicação durante 30 anos.

I.

Minha convicção ruiu quando comecei a estudar o nacionalismo moderno e o surgimento dos símbolos nacionais a partir da formação dos Estados-nação modernos. Não existiam países como os entendemos antes do século XVIII, a partir de quando ocorreram as diversas proclamações de república inspiradas na independência norte-americana. Os novos estados organizados, produto das quedas de monarquias e independências dos impérios coloniais, precisavam legitimar os novos poderes constituídos, ao mesmo tempo em que se consolidavam uma ideia de país, nação e pátria. Como fazer isso? Onde buscar essa noção de coletividade nacional que integrasse o homem comum – algo que levasse alguém a desejar lutar e até morrer pela recém forjada pátria? A resposta estava naquilo que o humanismo vinha rejeitando havia poucos séculos: a religião. O que os construtores dos Estados modernos perceberam é que ali havia um poderoso recurso motivacional para unir o povo que governavam em torno do seu propósito. Por isso, o cívico do Estado-nação imitou o mito e o rito da religião cristã.

O historiador português Fernando Catroga demonstrou como os Estados constituíram suas mitologias e ritualísticas a partir de uma religião civil. Catroga partiu de três exemplos para demonstrar sua tese: os Estados Unidos, a França e Portugal. Tratarei apenas dos dois primeiros. No caso americano, a presença de protestantes e teístas politizou o religioso e condicionou Deus a seus propósitos: o poder republicano dos Estados Unidos declarou-se divinamente protegido, colocando Deus e nação como consortes na sua Declaração de Independência. Claro, Deus desapareceu da Constituição promulgada alguns anos depois, mas permaneceu no imaginário político norte-americano. No caso francês, a religião foi completamente substituída logo de cara: Deus não existe, então o Pai foi incorporado pela noção de pátria – palavra que tem a raiz em pater, ou pai. Os valores cristãos cederam espaço a valores republicanos, os símbolos religiosos foram proibidos nas esferas públicas e trocados pelos símbolos da República.

Apesar de operarem em situações opostas na relação com a religião, os ritos das novas repúblicas seguiram estratégias semelhantes. Tanto EUA quanto a França tornaram-se mestres em espetáculos cheios de simbologia e emotividade: paradas militares exaltando a nação e demonstrando seu poder bélico, escolas celebrando cerimônias com hasteamento da bandeira e canto do hino, teatro relembrando independência ou revolução. Nascia, a partir de então, uma liturgia laica para educar o povo no amor ao seu país. Se a estratégia de cada Estado nacional não resultou na sacralização do próprio Estado, levou à sacralização de seus conceitos de nação (o conjunto do povo) e pátria (a terra deste povo). O resultado foi a devoção inquestionável à ideia de fazer parte de um povo e uma terra.

Resumindo, os ritos religiosos das antigas monarquias atreladas ao catolicismo foram substituídos pela laicidade republicana: 1) Deus deu lugar à pátria; 2) os símbolos sagrados (flâmulas da igreja e da monarquia) foram substituídos pelos símbolos civis (brasões e bandeiras nacionais); 3) os hinos de louvor a Deus cederam lugar para o hino nacional (que é louvor da pátria e da nação); 4) os santos (ou exemplos de fé, no caso protestante) foram imitados pelos heróis da pátria numa espécie de culto cívico dos mortos.

Por isso permaneceu no espírito cívico a característica altamente ritual das liturgias religiosas: mão no peito, olhar para a bandeira, canto em coro, reverência para com os símbolos. Claro que os resultados não foram todos iguais, pois a força de cada elemento é variável nas experiências históricas. Na França os símbolos republicanos e o hino tiveram maior resultado, mas o panteão de heróis ficou prejudicado (principalmente depois da experiência nefasta com Napoleão). Já nos EUA a bandeira foi intensamente festejada e o culto dos mortos encontrou vasto repertório, celebrando a memória de nomes como George Washington, Benjamim Franklin, Abraão Lincoln, entre muitos outros.

Lincoln Memorial, em Washington D.C. A estrutura é a de um templo grego, onde está contida a gigantesca estátua de Lincoln sobre a qual está escrito: “In this temple as in the hearts of the people for whom he saved the union the memory of Abraham Lincoln is enshrined forever” (Neste templo, assim como no coração do povo para quem ele salvou a União, a memória de Abraham Lincoln está consagrada para sempre). É evidentemente uma estrutura religiosa, baseada no modelo de templo grego, com uma imagem acompanhada da explicação de que se trata de um santuário mesmo.

II.

E o caso brasileiro? Boa parte da simbologia republicana brasileira foi elaborada pelos positivistas. Quem escreveu excelente reflexão sobre essa construção ideológica foi o historiador José Murilo de Carvalho. A figura feminina da República, tão valorizada na França (tem até nome, Marianne) não pegou no Brasil: dela restou apenas a face nas cédulas e na moeda de um real. Já a bandeira foi um sucesso: a expressão Ordem e Progresso (resumo da máxima positivista criada por Augusto Comte, tirando o inconveniente Amor) predomina no lábaro estrelado e foi usado várias vezes na propaganda governamental ao longo de um século. Mas o que mais explicita a característica religiosa do civismo brasileiro são outros dois elementos: o herói Tiradentes e nosso Hino Nacional.

O exemplo de Tiradentes é assombroso. Sua história foi resgatada um século depois de sua morte porque não havia heróis republicanos no Brasil. Como considerar herói da república um monarca como Pedro I? Ou um rei expulso da pátria como Pedro II? Ou as figuras apagadas da proclamação, como Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto? Então foi preciso inventar um herói na figura de Tiradentes. O bode expiatório da Inconfidência Mineira não era conhecido, não possuía maiores registros, e justamente por isso foi mais fácil inventar seu personagem. E isso foi executado de maneira explícita: sua imagem foi constituída a partir de características do imaginário em torno da figura de Cristo, retratado pelos artistas com cabelos e barba compridos, vestes brancas e olhar resignado. Além disso, ele morreu pela pátria, sem reagir, “mudo como uma ovelha que vai para o matadouro”. Em 1842, Teófilo Otoni escreveu em uma poesia afirmando que do sangue de Tiradentes brotou-nos a salvação. Veja o tamanho do messianismo colocado na conta desse homem.

Note-se a sacralidade da pintura do Tiradentes Esquartejado de Pedro Américo (1893), bem como a composição das partes desmembradas de seu corpo formando o mapa do Brasil.

Se Tiradentes foi uma fabricação cívica de uma genealogia mítica de um herói com contornos religiosos, os nossos positivistas se superaram mesmo foi com o Hino Nacional. Sabendo que o civismo precisava ser dotado de fogo sagrado, o autor do nosso hino utilizou palavras como idolatrada, salve, imagem, adorada, amor, eterno, glória. Escancarou o que outros idealizadores tentaram esconder. Claro, não se trata aqui de criticar o caso brasileiro por utilizar jargões da fé. Não foi apenas o Hino Brasileiro a ser marcado pela idolatria. Os brasileiros somente explicitaram aquilo que está implícito em todos os hinos nacionais do mundo: o louvor à própria noção de coletividade. Em última instância, é a exaltação dos homens aos seus próprios feitos e de seus antepassados. Uma ode à gens digna do Império Romano. Tanto os hinos quanto todos os outros símbolos cívicos tornaram real e palpável aquilo que era apenas uma ideia, um conceito, uma potestade: os reinos humanos.

III.

É claro que a criação de símbolos cívicos nacionais não aparece na Bíblia. Simplesmente porque não existia Estado-nação como o concebemos hoje. O que havia era a criação de ídolos forjados pelos monarcas para substituírem a Deus ou seu culto de alguma forma. A acusação pesou contra o povo de Israel da parte do próprio Iahweh: “E o Senhor lhe respondeu: Atenda a tudo o que o povo está lhe pedindo; não foi a você que rejeitaram; foi a mim que rejeitaram como rei” (1Sm 8.7). Mais tarde, na divisão de Israel de Judá, o rei Jeroboão resolveu criar um culto separado de Jerusalém, mas mantendo o mesmo Deus, apenas para garantir a manutenção do seu reino (1Reis 12:25-33). Neste caso, o uso da religião para fins políticos foi chamado pelos autores bíblicos de “pecado de Jeroboão”. Outras narrativas refletem a adoração ao Estado: a torre construída em Babel para “engrandecer o nome” (Gn 11:4), Nabucodonosor erigindo um monumento (Dn 2), Dario exigindo veneração (Dn 6) e o mesmo repetindo-se ao longo da história com muitos outros imperadores dos mais diversos reinos até atingir seu ápice em Roma, quando a política imperial promovia a devoção ao seu “príncipe da paz”, o imperador Augusto.

IV.

Não é à toa que o nacionalismo moderno anda atrelado a outra concepção política de origem bíblica: o mito fundador do messianismo. Tamanho uso e abuso da estética religiosa demonstra o quanto o homem contemporâneo ainda carrega consigo o homo religiosus, como diria Mircea Eliade. A política contemporânea, hoje mais do que nunca, está carregada de mitologia messiânica inspirada na história bíblica do Messias de Israel. Por isso, os discursos políticos costumam girar em torno da constituição da imagem de um “salvador” emergindo para resgatar um povo, como bem retratou o historiador Raoul Girardet. O salvador da mitologia política emerge em tempos de crise e vem sempre cercado de outros elementos típicos: a denúncia de conspirações maléficas, a nostalgia de uma “Idade de Ouro” perdida no passado e que deve ser restabelecida, bem como a luta contra as forças perniciosas destruidoras da nação. Por isso, Girardet percebe uma associação, na política contemporânea, entre o mito da conspiração com o mito do salvador. Esse “imaginário profético” é característico de nosso tempo, presente desde figuras como Napoleão Bonaparte e repetido exaustivamente em todo lugar – especialmente na política brasileira. O messianismo e a luta contra o mal está no DNA de nosso debate. Daí as reações de amor e ódio a governantes e opositores. A defesa é apaixonada porque escatológica, envolvendo a fé em nossos ídolos.

V.

Diante disso, o que faço? Nada muito complicado: sigo a orientação do apóstolo Pedro de que sou um peregrino nesta terra (1Pe 2.11) e a de Paulo para procurar a paz com todos (Rm 12.18). Sou brasileiro, mas consciente de pertencer a um Reino no qual todos os povos são parte do mesmo rebanho. Pago os impostos, obedeço às leis, compareço às eleições, trabalho para o bem comum, procuro respeitar as autoridades e desejo o progresso dessa comunidade imaginada chamada Brasil. Sou obediente e não tenho problemas com isso. Também não vou ofender quem canta o hino ou ostenta seu patriotismo de livre consciência. Mas não me peçam para colocar meu entusiasmo nessa farsa chamada pátria – seja norte-americana, francesa ou brasileira – nem me convidem para participar do culto à sua instituição.

– Crônica de André Daniel Reinke

Literatura sugerida:
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Companhia das Letras, 2008.
CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares. Coimbra: Edições Almedina, 2006.
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
GELLNER, Ernest. Naciones y nacionalismo. Madrid: Alianza, 2001.
GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.