Noites geladas como aquela eram assim: o vento frio dissipava as nuvens e abria as cortinas do céu para o espetáculo. As estrelas brilhavam, milhares de luzes e cores vibrantes que o pastor apreciava observar. Jacó estava deitado na relva, de costas, ouvindo o balido das ovelhas e o ressonar dos colegas de trabalho. Eles dormiam profundamente. Era dele a vigília nas primeiras horas.
Ficar acordado para cuidar do rebanho do patrão não era a tarefa mais apreciada no pastoreio. Mas Jacó não achava tão ruim. Levantava para espiar as ovelhas a fim de garantir que estava tudo certo com o rebanho. Depois voltava a deitar para contemplar aquele céu tão brilhante e misterioso. Como gostava de admirar as estrelas. Como era mesmo aquele salmo aprendido na sinagoga? “Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras de suas mãos”. Sim, era isso mesmo. Quem o compôs deve ter visto um céu noturno tão límpido como esse.
Naquela noite Jacó estava dividindo o turno com Saul. Ele não estava ali. Foi procurar a ovelha mais novinha – uma cria espoleta, estúpida e querida que se desgarrou do rebanho. Sempre acontecia o mesmo: alguém precisava ir atrás. Pouco depois, Saul voltou com a pequena nos ombros.
– Ela caiu naquele buraco de novo – Saul murmurava enquanto largava a pestinha no meio do rebanho. Depois voltou e deitou a um metro de Jacó. Disse para o colega:
– Fica de olho, que eu não aguento mais. Preciso dormir um pouco.
– Tudo certo, estou sem sono – respondeu Jacó, enquanto Saul se enrolava na capa e adormecia.
Jacó voltou a olhar para o céu e sorriu. Embora a vida do campo fosse dura e o salário diário servisse apenas para livrá-lo da fome, havia possibilidade para momentos como aquele. Olhar para o céu lhe dava a sensação de proximidade com o Eterno. Era uma comunicação sem palavras, apenas sentida. Puxou seu manto e cobriu o corpo. Estava mais frio do que o normal para a época.
Tudo transcorria igual às outras vigílias, exceto pela presença daquela estrela muito estranha aparecida algumas noites atrás. Jacó a acompanhava com curiosidade. Não parecia ser uma estrela, pois ela se movia de um jeito estranho. Sua luz era misteriosa, não brilhava como o resto do céu.
A brisa gelada parou de soprar. O campo, sempre repleto de sons dos insetos e animais, silenciou. A natureza parecia suspensa, em expectativa. Então, aconteceu algo que Jacó nunca tinha visto antes. Pequenas fagulhas começaram a surgir entre a relva, como vagalumes. O ar tornou-se denso, morno, levemente iluminado, uma névoa cobrindo o campo. Eram muitas cores: luzinhas verdes, azuis, vermelhas e brancas que subiam do chão e giravam em torno do pastor. Seria fascinante, não fosse o medo. O que era aquilo?
Não foi preciso acordar os companheiros. Um a um eles foram despertando entre as luzes que se intensificavam, girando cada vez mais rápido. Eles ficaram assim: assustados, assombrados, boquiabertos. Atraídas umas às outras, as fagulhas voaram até se unirem no alto do monte. O brilho intenso e branco revelava aos poucos o contorno um tanto indefinido de uma figura humana. Era um corpo, não havia dúvida, mas que tipo de corpo? Pairava no ar, suspenso, brilhando intensamente. Luz mais sentida do que vista, era agradavelmente quente. O calor emanado revelava afeto, proximidade – uma beleza terrível. Então uma explosão multicolorida envolveu os pastores. Tomados de assombro, atiraram-se ao chão. Alguns cobriram a cabeça, outros ficaram de joelhos, ninguém tinha coragem de erguer os olhos. As ovelhas, entretanto, dormiam tranquilas, serenas. Nem a fujona se mexeu.
Jacó tinha ouvido histórias na sinagoga. Lembrou dos enviados de Deus visitando Abraão, da sarça queimando quando o Eterno falou com Moisés ou sobre carruagens de fogo aparecendo ao profeta. O que ele estava vendo certamente era algum milagre desse tipo. “Seria um anjo?”, perguntava-se Jacó. Foi quando a figura iluminada falou, com voz mansa, suave, mas grave e profunda:
– Não tenham medo. Eu vos anuncio uma grande alegria, para vocês e todo o povo: nasceu hoje o Salvador, que é o Messias e Senhor, na Cidade de Davi!
Levou um tempo até os pastores criarem coragem para erguer o rosto. Jacó refletia sobre o anúncio do anjo. O Salvador nasceu na Cidade de Davi. “Naquela vila?”, ele estranhou. Belém era perto, mas não tinha nada de atraente. Era um amontoado de casebres, famosa apenas porque Davi havia nascido ali – nada além disso. Àquela altura, os outros pastores também já haviam entendido que se tratava de um enviado celestial e estavam todos em pé, aguardando novas ordens. O anjo falou:
– Isto servirá de sinal para saberem que é o Salvador: vocês o encontrarão enrolado em faixas e deitado em uma manjedoura.
Jacó estranhou a última parte. Por qual razão o Messias estaria em uma manjedoura? É um cocho para animais, jamais um local para colocar um bebê. Ainda mais um bebê da realeza, o filho de Deus, o Messias que governará o mundo a partir de Jerusalém.
Os devaneios de Jacó foram interrompidos por um evento ainda mais impressionante. O horizonte inteiro explodiu em um turbilhão de cores, sons e aromas que não se revelaram somente aos sentidos, mas batiam forte em suas almas. Uma miríade incontável de anjos apareceu nos céus, entonando uma canção gloriosa como eles nunca ouviram, cuja beleza ultrapassava a música presenciada por qualquer rei da terra. Os anjos entoavam em brados, reverberando como trombetas e fazendo o chão tremer:
– Glória a Deus no mais alto dos céus e paz na terra aos homens que ele ama.
A miríade repetia em vozes que se intercalavam no mesmo refrão:
– Glória a Deus no mais alto dos céus e paz na terra aos homens que ele ama.
Quanto tempo durou aquele espetáculo, nenhum deles sabia dizer. Poderiam ser segundos, minutos – mas talvez horas ou dias. O próprio tempo parecia suspenso numa ode ao Criador. Os pastores ouviam, tentavam cantar, mas suas vozes eram como gemidos ante o espetáculo presenciado. Restava o assombro. Seus corações queimavam.
Da mesma maneira como surgiu, o coro angélico desapareceu. O último “glória a Deus” veio acompanhado de um brilho intenso cruzando o horizonte como um raio, restando a noite vazia e algumas luzinhas desaparecendo no meio da relva. Os ruídos noturnos recomeçaram, o calor desvaneceu e o vento gelado voltou a soprar. Os pastores olhavam uns para os outros. Então João tomou a iniciativa, traduzindo em palavras a intenção de todos:
– Vamos para Belém!
Cada um já tomava sua capa e cajado quando uma pergunta óbvia precisou ser feita.
– E as ovelhas? Quem ficará cuidando delas? – perguntou Saul.
Passou-se um minuto de silêncio um tanto constrangedor, ninguém querendo tomar a frente. Jacó se prontificou:
– Podem ir, eu fico com elas.
Não foi preciso nada mais. Os colegas o abraçaram, beijaram seu rosto e correram para os lados de Belém. Jacó ficou sozinho com a brisa fria, o balido das ovelhas e a luz das estrelas. Olhava para o alto, observava aquela miríade de estrelas parecendo ainda mais recheada de significado do que antes.
Seus pensamentos ferviam. Se houve algum resto de sono naquela noite, ele fora expulso. Não dormiria mesmo querendo. Além da fantástica experiência pela qual passara, uma pergunta reverberava em sua mente. “Quem nós somos para receber tamanha notícia?”. Um bando de pastores ignorantes no meio do nada. Não foi ao poderoso rei Herodes que os anjos anunciaram o Messias, nem aos sabichões de Jerusalém. Foi aos pobres e humildes trabalhadores do campo, que passavam a vida lutando para sobreviver. “Eu vi o coral que canta diante do Eterno”, pensava Jacó. Não conseguiu conter as lágrimas. “Eu vi”.
O tempo passou rápido. As ovelhas continuavam comportadas. Exceto a pequena fujona, sempre ela, volta e meia se desgarrando e demandando a atenção de Jacó antes que desaparecesse. Com os primeiros raios de sol, os companheiros retornaram. Seus relatos eram surpreendentes. Saul agarrou os ombros de Jacó e lhe disse:
– Encontramos o Messias, Jacó! Mas você não vai acreditar.
Ele ficou confuso. Perguntou:
– Não vai acreditar no quê, Saul?
Eufórico, Saul disse:
– Tantas coisas que não sei nem por onde começar. Deixa ver… Os pais dele são… como vou dizer? Eles são como nós!
– Como nós? – perguntou Jacó. – O que você quer dizer com isso?
Saul e os outros pastores começaram a descrever a cena que encontraram. Era um casal pobre. O pai do menino, um homem rude e quase idoso, chamava-se José. Tinha as mãos grandes de marceneiro e rosto marcado. A mãe era uma menina, mal entrada na idade fértil, também vestindo a simplicidade. Os pastores esperavam encontrar um casal muito distinto e rico, em algum tipo de esconderijo, mas não foi nada disso. Eles estavam no primeiro piso de uma casinha modesta, local em que até pouco tempo atrás os donos guardavam poucos animais. Era um curral, a bem da verdade. Estava vazio porque os animais foram entregues para pagar os impostos do Império. E o bebê, o Messias de Israel, estava no cocho de uma vaca, enrolado em trapos que o protegiam da palha áspera. Então Saul disse a Jacó:
– Olha, não foi por acaso que o anjo nos disse sobre as condições em que o Messias estava. Nunca o procuraríamos em um lugar desses, nunca!
Jacó pensou por alguns instantes. Os anjos que servem o Eterno vieram anunciar a vinda do Salvador a um bando de miseráveis na periferia do mundo. O próprio Messias vestiu seus trapos. O pastor estava deslumbrado. Não mais pela glória vista quando o coral celestial cantou o louvor retumbante do trono do Eterno, mas pela revelação reservada a eles. Não foi aos reis que o Eterno mandou suas legiões anunciando o Salvador: foi a miseráveis trabalhadores no perdido campo dos excluídos. Não foi em um palácio que o Filho de Deus viu pela primeira vez o mundo a salvar: foi no curral de uma família falida. O pastor não sabia qual o destino do menino recém-nascido. Mas os sinais eram promissores.
Dessa vez, parecia que os humildes da terra teriam quem olhasse por eles.
– Conto de André Daniel Reinke baseado em Lucas 2.1-20.